Construtos
por Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho¹
A atual exposição de Chico Fortunato reúne um conjunto de obras que proporciona uma imersão em seu sofisticado, particular e refinado processo criativo. Nos últimos anos suas preocupações enquanto pintor se circunscrevem ao aprofundamento de uma poética de caráter geométrico, ainda que já tenha flertado com elementos figurativos da paisagem. Sua pesquisa formal exige silencio, destreza, rigor e transcendência. Em claro diálogo com a arquitetura, o urbanismo e o design, ele revela um inconsciente matemático como se buscasse, na gênese natural das linhas e dos planos, um idioma universal. Questões como os limítrofes da tela são introduzidas sutilmente em sua regra dos cálculos do perímetro. Cores e geometrias não se sobrepõem ou se subordinam, não são aleatórias ou casuais. Como Torres Garcia anunciou, somente “o espírito de síntese” possibilita a realização da construção do quadro inteiro, e “é somente este espírito que torna viável a obra ser vista em sua totalidade, (...), na unidade”. Com seus novos dípticos, desenhos-colagens, madeiras e “pinturas-espaciais”, Chico amplia seu vocabulário mostrando, com liberdade costumeira, sua predileção por certos elementos e cores. Não clama pelo espetáculo banal, quer essência. Pertencente a nossa terceira geração concreta, como bem pontuou Paulo Herkenhoff, suas afinidades estéticas são partilhadas para além do contexto histórico local, de obras de minimalistas como a do americano Robert Mangold, ao alemão Blink Palermo, nos trabalhos do início do século passado do grupo holandês De Stijl ou no construtivismo russo. Aliás é no exame dos avanços da vanguarda russa nos anos 1910/1920 que reside uma parte importante de sua grafia. Os exercícios dos Vkhutemas, o equivalente soviético a Bauhaus nos anos 1920, trazem reflexões e referências que iluminam sua prática bidimensional, sejam a partir de superfícies planas, recortes de madeiras ou espaços vazios. Chico prefere explorar a desestabilização do olhar ao invés de criar dogmas por via de repetições ou padrões. É notável seu domínio dos planos e espaços como bem nos ensinou Rodchenko e El Lissitzky, ou a mensagem suprematista de um mestre como Malevich. Seus dípticos são junções de partes autônomas, as telas conectam-se como se fossem espaços previamente imantados. São espaços que se vinculam e se afastam, seja pelas oposições ou complementariedades das cores escolhidas, não óbvias, seja pelo proposital desalinho das flutuações de linhas resultantes de seu processo pictórico. Estar ao lado pode ser aquilo que diverge, que compara, mas também que unifica, dá sentido a um só corpo. A engenhosidade na construção de suas linhas surge como uma resultante de sucessivas sobreposições e acumulações de planos de cores. São linhas pintadas por adições. A superfície visível do que parece ser o plano de fundo, assento para as linhas, é na verdade o fim de um intenso e exaustivo trabalho de camadas de tinta acrílica. São linhas por decorrência, por consequência. Os trabalhos de colagens, em formatos pequenos, traduzem a experiência e a habilidade contínua de manusear planos. Distintamente, aqui são as linhas que demarcam os recortes iniciais da colagem; linhas por origem, definidoras de ângulos e polígonos. São exercícios que nos remetem às antigas fotomontagens, inovadas por Gustav Klútsis, e que ao invés de servir a um propósito propagandista, traduzem mensagens explicitas de contrastes, entre versos e reversos, o longe e o perto, o que está dentro ou por fora. A figuração aqui é subserviente aos elementos geométricos, indica, mas não explica isoladamente. Não existem pontos de partidas ou de chegadas. Na apresentação da série recente em madeiras maciças de descarte, Chico reitera o uso de material conhecido, e já anteriormente explorado, introduzindo novas dinâmicas. Ao invés de recortes, torções de planos e ilusões nas perspectivas, ele brinca com tons de cores, ora em superfícies contínuas, ora escavadas. A aplicação da tinta revela suaves nuances, onde apenas o olhar atento e a correta incidência de luz conseguem discernir sutilezas. As harmonias propostas escondem planos e figuras que parecem caminhar para fora dos limites da obra. Ao artista interessa retirar o público de suas zonas de conforto, propondo enigmas divertidos de percepção ao modo como Max Bill trabalhou suas telas nos anos 1960/1970 em Ulm( Alemanha). O matemático e psicólogo americano George Kelly, ao elaborar sua Teoria dos Construtos Pessoais (1955), pontuou que os sistemas cognitivos dos indivíduos são influenciados pela maneira como eles vivenciam suas próprias experiências. Pessoas diferem na sua forma de apreender, interpretar e construir seu universo. Não existe uma delimitação a priori do que é certo ou errado, e todas as nossas percepções estão sujeitas à revisão ou trocas, assim como envolvem distintos contextos sociais, culturais, educacionais e emocionais. Esse processo de compreensão não é estático, ou imutável, ao contrário, ele reage a novos estímulos, alarga e se renova a cada momento. Chico Fortunato não propõe orientar o olhar do espectador para uma única direção, quer produzir estímulos e inquietudes. Sua ambição é a interação, sem que os limites do tempo sirvam de restrição para uma apreensão de fato. Almeja saber do outro que impacto cada obra revela no seu mais íntimo contato. Inquiri por desejar contribuir com a visão alheia - talvez estando mais próximo desse ente externo – aprimorando simultaneamente, e generosamente, seus diálogos, suas próprias sensações, seu construto particular.
Rio de Janeiro, julho de 2024
¹ Presidente do Conselho do Museu de Arte do Rio de Janeiro – MAR/RJ
Um Olhar
por Vera Pedrosa
Meyer Schapiro observava em meados da década de 1930, em A Natureza da Arte Abstrata - e cito de memória - que, antes de surgir uma arte não-figurativa, já a forma e a cor eram tidas como os valores essenciais da arte pictórica. A arte abstrata viria a liberar o artista da carga da “imitação do real” e dos conteúdos de circunstância ao propiciar a visão clara das componentes estéticas e formais da obra. A nova linguagem pictórica, dissociada de apoios temáticos e de regras precisas, teria permitido a apreciação da qualidade artística de obras até então desconsideradas: aquelas anteriores ao Renascimento, as de culturas distantes e de autores ínsitos, as de alienados e crianças.
Desde 1911, com Kandinsky, Malevich e Kupka, o pintor abstrato encontra-se diante do infindável potencial da cor e da forma. A partir dos elementos primordiais, que são também, não o esqueçamos, os da pintura figurativa, o campo é amplo e ambivalente, assim como o são as classificações. Consideremos. De Kooning é pintor abstrato ou figurativo? Afirmou que aspirava a que seu retratos fossem uma síntese de Ingres e Soutine.
As artes abstratas de vocação geométrica, assim como aquelas de vertentes líricas recebem qualificativos diversos e variáveis. Há no Brasil uma forte tendência construtivista. Roberto Pontual qualificou com acerto a vertente não matemática do concretismo como sendo a da “geometria sensível”. Entre os mestres de um abstracionismo às vezes expressionista, às vezes quase caligráfico, temos um Flavio Shiró e as figuras enigmáticas que emergem das refinadas transparências de seus quadros.
A dicotomia concretismo/neo-concretismo foi de caráter doutrinário e de utilidade local: distinguiu entre praticantes da geometria rigorosa e aqueles que reivindicavam a liberdade e a intuição no manejo de forma e da cor. Willys de Castro e as “Superfícies Moduladas”, Lygia Clark e os “Casulos”, Oiticica e os “Relevos Espaciais”, classificados como neo-concretistas entre nós, vistos além fronteiras aparecem como minimalistas nestas fases estelares de sua trajetória.
Consideremos a arte de Chico Fortunato. Pintor da cor e da forma, Fortunato atinge a maturidade e um ápice de qualidade na série mais recente, as “Linhas que Flutuam”. São quadros – para persistir no arcaísmo – de grande autoridade. Impressionam pela precisão formal, pela fatura refinada e pela limpidez intelectual. Irradiam harmonia. É obra de natureza meditativa e um marco estelar na produção deste artista.
Fortunato alcançou a maturidade por meio de uma evolução coerente, inventiva e sem rupturas ou desvios. A mão do artista foi sempre impecável, desde as pequenas aquarelas de reminiscência paisagística dos anos 80, de cores límpidas e luminosas a se destacarem sobre o espaço em branco, protagonista da obra como na arte oriental. Às vezes, ao deixar a tinta escorrer sobre o papel para misturar-se ao pigmento num encontro espontâneo, permitiu a intervenção do acaso na obra. A impressão é de liberdade, leveza e prazer.
Ainda no final da década, o pintor associou às aquarelas sobre papel um componente contrastante, o de placas de ardósia. A contraposição entre a delicadeza de um dos meios e a rusticidade do suporte inesperado cria estranhamento, assim como a sensação de surpresa em outros momentos, quando Fortunato utilizou superfícies de madeira como elemento de obras realizadas com tintas a óleo ou acrílico. Nas peças com ardósia, Fortunato contrapôs ao lirismo a aspereza. Naquelas com madeira, comparou o artifício à matéria natural. Essas obras foram um “rompimento da moldura”, uma vez que a disposição das placas de ardósia no espaço circundante é irregular, assim como é liberado o perímetro das obras com madeira. Na época, Paulo Herkenhoff escreveu sobre a série das placas ardósia: “A pedra como suporte da obra. Paisagem de pigmento. Pedra sobre pedra: fragmento que se refaz em todo na captação do panorama.”
Na década de 90, Chico Fortunato adotou uma linha de nítido corte geométrico em composições concretistas frontais e clássicas. Adiante, a curiosidade o levou a questionar a bi-dimensionalidade do plano. Quis sondar a ilusão volumétrica por meio de jogos destros em que empregou formas geométricas contrapostas em espelho. Os volumes em trompe l’oeil obtidos desorientam o espectador e criam uma sensação pulsante de avanço e recuo espacial. Não à toa Fortunato viveu durante anos na terra de Escher... Um tabu do abstracionismo foi desafiado: o da pureza ideal do plano.
O enigma volumétrico talvez o houvesse impulsionado a “partir do plano para o espaço”, ou seja, do bidimensional para o tridimensional. Mas não, voltou ao plano, como o demonstram duas obras posteriores sobre suportes de madeira, “Figura 1” e “Quadrangular”, ambas de formato irregular. A produção do artista nessa fase continua a revelar consistência, seriedade e domínio.
Recentes, as jubilosas peças intituladas “Torções” lidam diretamente com o espaço dinamizado de modo sutil pela intervenção de ligeiras incidências de uma cor contrastante nas bordas de uma superfície monocromática. Essa distorção espacial já não cria ilusão de volume ou sensação de profundidade. Dispostos na diagonal e de uma simplicidade encantadora, as “Torções” abordam um espaço em viés.
No momento atual de uma trajetória consistente e bem lograda, a arte de Chico Fortunato atinge a resolução serena de um silêncio expressivo. A obra revela uma obstinada busca da máxima pureza na abordagem dos elevados temas de sua arte: a forma, a cor, o espaço, a pulsação e a luz.
Em ”Linhas que Flutuam” Fortunato emprega cores puras e resplandecentes. São telas de linho de dimensões generosas embora não extensas a ponto de impedirem a visão aproximada da superfície. O fundo é de uma ou não mais de duas cores, sobre o qual aparecem linhas segmentadas que correspondem às dimensões exatas da periferia do quadro.
A serena densidade dessas telas suscita semelhanças com a do pintor minimalista Robert Mangold. Mais que a diferença no formato dos quadros, a grande disparidade entre ambos é o tratamento dado à linha, elemento gráfico fundamental no universo do pintor americano e à qual Fortunato confere um valor dimensional. Ao aproximar-se de uma tela de Fortunato, descobre-se que as linhas anguladas de suas composições não são gráficas, pintadas a pincel, mas espaciais. Antes aparecem como ausência, gretas lineares na tela a revelarem a trama do linho no suporte ou as cores que marcaram etapas anteriores na engenharia da obra. Em certa medida, a linha em Fortunato faz lembrar as “costuras” de Paulo Roberto Leal. Surpreendentes interstícios flutuam onde à distância o espectador imaginara traços de tinta.
O modo de fazer é laborioso e exige rigor e minúcia. A disposição “flutuante” das linhas anguladas é previamente esboçada no suporte da tela. Resumo as palavras do artista: “A trama do suporte, seguindo o trajeto da linha esboçada, é coberta por uma fita isolante. O quadro recebe uma camada de tinta que recobre a fita. Retirada a fita, o suporte da tela surge como uma linha aberta à trama. Quando nos traços flutuantes aparecem três ou mais cores, é porque o processo foi repetido para cada cor. Cada linha é o testemunho da cor que dominou a superfície do quadro em algum momento do processo. A última cor a ser pintada é percebida no final como o fundo da pintura”. A intensidade da atenção e a repetida incidência manual do pintor no decorrer do processo conferem às telas terminadas e meditativas sua cálida densidade e sua muito humana “immediatezza”.
Rio de Janeiro, março de 2019
Espaços virtuais
por Felipe Scovino
O determinante para a passagem do moderno para o contemporâneo nas artes visuais brasileiras foi o estabelecimento das chamadas linguagens abstratas a partir de meados dos anos 1950. Não foram apenas mudanças de tema, atitude e técnicas mas acima de tudo foi criado um novo espaço de criação e percepção estética no país. As linguagens abstrato-geométricas, e em especial o neoconcretismo, criaram uma utopia desenvolvimentista em conjunção com a construção de Brasília, a Bossa Nova, a arquitetura moderna e um novo empreendimento político e ideológico que tinha a frente Juscelino Kubitschek. Vivíamos uma espécie de auge e celebração das práticas culturais assim como um sentimento de progresso e desenvolvimento, vide a industrialização, poucas vezes visto no Brasil. As invenções, métodos e processos trazidos pelo neoconcretismo não cabem ser discutidas aqui já que foram temas de inúmeros artigos, ensaios e livros, mas o que quero ressaltar, já criando uma associação com o trabalho de Chico Fortunato, tema desse breve texto, é a sua capacidade de continuar criando e celebrando uma rede contínua, viva e contemporânea. Chico não relê o neoconcretismo, concretismo ou qualquer movimento dos primórdios da arte contemporânea brasileira, mas por outro lado é claro o diálogo do seu trabalho com essas fontes. O trabalho de Chico investe sobre o passado mas tem um claro interesse em entender a força ou potência dessas linguagens construtivas no presente.
Percebam que juntamente com a tinta acrílica, o artista faz uso da fita adesiva, num processo no qual ele a fixa na tela, realiza a criação de um campo cromático e depois a retira. Por meio desse gesto simples, há uma percepção ilusória de que existe volume e densidade naquela área em que a fita se fez presente. Já em Dupla trajetória (2014), a fita é adicionada à tela crua e depois retirada, dando vida a um processo que torna visível o campo de matéria próprio da tela além de resíduos de cola e de tinta que se infiltraram nesse pedaço mesmo estando coberto pela fita. O artista concebe um espaço orgânico de produção pictórica, utilizando materiais e procedimentos simples. É pintar sem necessariamente ter o pincel como meio. Este é um dado interessante no trabalho de Chico que ajuda a pensar o lugar de invenção e atualização das linguagens geométricas no tempo presente. Nesse momento, me volto para outro artista que possui similitude com as práticas de Chico: Paulo Roberto Leal. Ao costurar algumas de suas telas, Leal também pontua esse lugar do construtivo como plano de inovação. As ações de pintar e costurar assim como traçar linhas e campos de cor por meio da acrílica, no caso de Chico, ou usar linha e agulha, no caso de Leal, acabam se confundindo. O que essas gerações de artistas nos mostram é a incrível capacidade rizomática da pintura, que continua a todo o instante se desdobrando e criando novos ritmos, zonas de criação e aparição no mundo.
Em obras como Urbano (2013) e Vida secreta (2014) assistimos ao interesse do artista em transpor o plano e seguir em direção ao espaço. A aparição das linhas – ou dos tapes – cria um jogo ilusório entre figura e fundo, alternando de forma incessante esses posicionamentos, ao mesmo tempo em que é construído um espaço fraturado mas mesmo assim perceptível de um ambiente. É um espaço tridimensional que se coloca de forma frágil, vacilante, em suspenso mesmo, como, guardadas as devidas especificidades, os ambientes e personagens das obras de Matisse. Se na obra deste artista a cor tinha uma preocupação e razão de ser, no caso de Chico o seu interesse se coloca mais na construção abismal de uma série de espaços que se lançam uns sobre os outros. Existe um interesse em construir uma reação em cadeia que acaba pondo em dúvida as nossas certezas sobre aquilo que está diante de nós. Os espaços virtuais que se oferecem aos nossos olhos são fabricados, dissolvidos, reorganizados e embaralham-se constantemente. Há um processo contínuo e veloz de trânsito dessas linhas que acabam por constituir um espaço para além do plano. Estão lá situações que nos lembram câmaras, quartos, espaços ambiguamente fechados e abertos (sempre a uma nova disposição e reorganização dessas linhas que já podemos dizer arquitetônicas).
Não há um centro nas pinturas. Nossos olhos estão sempre a percorrer o espaço a procura de uma ideia formatada ou um senso lógico para aquelas estruturas. Sua força está justamente no aspecto transicional, na capacidade de se manter em uma velocidade constante de mudança assim como as coisas do mundo. Percebam também que a soma das linhas (fraturadas) é o resultado do perímetro da tela. O aspecto racional da construção dessas pinturas se faz no próprio desejo de implodi-lo.
Como riscos no plano ou ambicionando serem desenhos no espaço, essas pinturas correspondem a um processo coeso desse artista que deseja a todo momento pensar o lugar da pintura na contemporaneidade, através de seus espaços de fabricação, ilusão e metáfora.
Rio de Janeiro, abril de 2017
Obra Silenciosa de Chico Fortunato
Por Vera Pedrosa
É avaliação corrente que uma das vertentes do cenário atual das artes visuais no Brasil, a de vocação geométrica, descende de modo atávico da notação gráfica e dos traçados ornamentais de nossos povos indígenas. Antepassado mais recente e reconhecido dessa linhagem artística, o extraordinário ímpeto da arquitetura brasileira de meados do século passado deixou marca significativa no vocabulário até hoje empregado por destacados artistas brasileiros.
Obtém-se a transmissão imediata de conteúdos visuais no abstracionismo pictórico por meio da utilização de alfabetos de caráter universal, representados por figuras geométricas planas ou sólidas ou por sinais gráficos de ordem gestual, aparentados aos arcaicos sistemas de notação. Trata-se de uma linguagem universal, que incorpora, em seu aspecto formal, padrões familiares ao psiquismo.
Linguagem disciplinada e otimista, o abstracionismo de caráter geométrico tende à clareza. No entanto, ao lado da via racionalista, a trama construtivista é hoje igualmente adotada por artífices da composição espontânea. As modalidades que assumem as novas geometrias admitem a introdução de superfícies trabalhadas, de texturas contrastantes, de formatos livres e da ambigüidade espacial. Incorporam até mesmo o outrora abominado trompe l’oeil. Assim como a abstração linear sensível de aparência não-conotativa, a corrente geométrica faz parte das artes do silêncio.
Por não amparar-se no discurso, a abstração geométrica manifesta-se diretamente, o que não implica ausência de propostas por vezes enigmáticas a serem desvendadas. Porém, ao prescindir do discurso ou da súmula narrativa, âncoras necessárias à compreensão de instalações e manifestações multimídias e por mais que suscite indagações de natureza intelectual, o construtivismo em nossos dias não parece enquadrar-se na corrente definição acadêmica das manifestações consideradas “conceituais”.
A trajetória artística de Chico Fortunato inscreve-se no contexto acima esboçado. Em seus primórdios, o artista realizou, na linha do abstracionismo lírico, aquelas belas e refinadas às vezes evocativas de paisagens fluidas. Nelas, permitia que se esparzissem pelo papel, comandadas pelo escorrer da água, manchas subsidiárias a pinceladas de cor concentrada. O encontro acidental do pigmento com a água que o dilui confere a esses trabalhos uma atmosfera delicada e poética. São pequenas jóias a captar preciosos estados de espírito.
Na década de 1990, passou a construir relevos murais em que se associavam planos de cor a lajes irregulares de pedra, lançadas ao espaço com grande ousadia. Naquela pesquisa, já despontava o propósito geométrico que se via desafiado e contrariado pela qualidade bruta do elemento orgânico empregado em justaposição aos planos de cor. São peças vigorosas, de grande presença, com formatos prenunciadores do trabalho atual.
Como membro da ramificada família de tradição construtivista nas artes visuais brasileiras, Chico Fortunato é artífice de uma obra que dá continuidade histórica às linhas de investigação desenvolvidas a partir de meados do século XX pelos movimentos derivados ou dissidentes do concretismo. Os artistas neoconcretos do Rio de Janeiro tomaram a iniciativa de recusar a racionalidade matemática preconizada pela doutrona concretista de origem européia e tiveram a audácia de romper o retângulo pictórico para “apropriar-se do espaço”, partindo para a tridimensionalidade assumida,pertence à ramificada família de tradição construtivista das artes visuais brasileiras.
Já as gerações posteriores há muito não se defrontam com os constrangimentos que motivaram a rebelião carioca na década de 1950, tais como a exigência do confinamento da obra plástica à grade horizontal-vertical e o dogma da estrita obediência ao caráter bidimensional do suporte, que, na prática, criminalizava a perspectiva.
Na produção de Chico Fortunato, o formato irregular do suporte corresponde de modo especular ao da figura interna por ele delimitada. Contrastes de cor e justaposições de texturas resultam em notáveis ambigüidades espaciais. O vai-e-vem formal é avivado pelo recurso à aposição invertida de formas idênticas de dimensão escalonada, a criar âmbitos tensionados e misteriosos. Observa-se o equilíbrio dinâmico de continente e conteúdo, a enganar o olhar na ilusão do volume.
A plasticidade da obra é fruto do jogo de figura e fundo que tem como suporte real o muro. Elementos constitutivos se contrapõem em pulsação permanente. Não há espaços neutros ou inertes. Daí o estranhamento provocado pelo confronto entre a figura interna e o perímetro do suporte. Os planos articulados geram figuras reiteradas que configuram sólidos enganosos, volumes voláteis e ambientes cavernosos providos de perturbadoras aberturas. Apanhado na rede de um jogo tenaz, o espectador é compelido a refletir sobre a confiabilidade da percepção sensorial.
Com extrema economia de meios, na escolha de elementos não discursivos, na opção pelo visual, a obra de Chico Fortunato suscita indagações de ordem conceitual de certeira relevância no equacionamento dos pressupostos fundamentais da atividade artística. As alternâncias espaciais, os planos de cor que momentaneamente adquirem volume e parecem transformar-se em sólidos, convocam no espírito do espectador o questionamento da objetividade de seu poder pessoal de observação. Estamos diante de uma autêntica problemática conceitual suscitada pela pura imagem.
Os títulos de algumas das séries realizadas - Torções, Maleáveis, Armadilhas - revelam as intenções sutis de Chico Fortunato. Nem sempre as realiza por meio de subterfúgios. Nos momentos em que recorre abertamente ao trompe l’oeil, deixa explícita a natureza de sua proposta.
O uso da madeira na composição parcial ou total das superfícies, enriquece a obra com novo componente orgânico. Cálidas, sóbrias, afeitas ao toque e acopladas às superfícies pintadas ou às telas cruas, as placas de madeira aplicadas ao suporte são registros de venturas e desventuras da vida vegetal. Vasos que foram condutores de seiva são veios apenas perceptíveis nas superfícies aplainadas. Remetem a períodos de bonança e escassez e à passagem do tempo. As madeiras são nativas das matas brasileiras - sucupira, imbuia, peroba, cedro, Angelim, tauari - nomes sonoros de nobre procedência e respeitável presença.
Assim é o fazer de Chico Fortunato: poético, frontal, sem estratagemas, confiante no poder de comunicação direto de sua arte silenciosa e ágrafa.
Rio de Janeiro, julho de 2010