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Um Olhar
por Vera Pedrosa

Meyer Schapiro observava em meados da década de 1930, em A Natureza da Arte Abstrata - e cito de memória - que, antes de surgir uma arte não-figurativa, já a forma e a cor eram tidas como os valores essenciais da arte pictórica. A arte abstrata viria a liberar o artista da carga da “imitação do real” e dos conteúdos de circunstância ao propiciar a visão clara das componentes estéticas e formais da obra.  A nova linguagem pictórica, dissociada de apoios temáticos e de regras precisas, teria permitido a apreciação da qualidade artística de obras até então desconsideradas: aquelas anteriores ao Renascimento, as de culturas distantes e de autores ínsitos, as de alienados e crianças.

Desde 1911, com Kandinsky, Malevich e Kupka, o pintor abstrato encontra-se diante do infindável potencial da cor e da forma. A partir dos elementos primordiais, que são também, não o esqueçamos, os da pintura figurativa, o campo é amplo e ambivalente, assim como o são as classificações. Consideremos. De Kooning é pintor abstrato ou figurativo? Afirmou que aspirava a que seu retratos fossem uma síntese de Ingres e Soutine.

As artes abstratas de vocação geométrica, assim como aquelas de vertentes líricas recebem qualificativos diversos e variáveis. Há no Brasil uma forte tendência construtivista. Roberto Pontual qualificou com acerto a vertente não matemática do concretismo como sendo a da “geometria sensível”. Entre os mestres de um abstracionismo às vezes expressionista, às vezes quase caligráfico, temos um Flavio Shiró e as figuras enigmáticas que emergem das refinadas transparências de seus quadros.

A dicotomia concretismo/neo-concretismo foi de caráter doutrinário e de utilidade local: distinguiu entre praticantes da geometria rigorosa e aqueles que reivindicavam a liberdade e a intuição no manejo de forma e da cor. Willys de Castro e as “Superfícies Moduladas”, Lygia Clark e os “Casulos”, Oiticica e os “Relevos Espaciais”, classificados como neo-concretistas entre nós, vistos além fronteiras aparecem como minimalistas nestas fases estelares de sua trajetória.

Consideremos a arte de Chico Fortunato.  Pintor da cor e da forma, Fortunato atinge a maturidade e um ápice de qualidade na série mais recente, as “Linhas que Flutuam”.  São quadros – para persistir no arcaísmo – de grande autoridade. Impressionam pela precisão formal, pela fatura refinada e pela limpidez intelectual. Irradiam harmonia. É obra de natureza meditativa e um marco estelar na produção deste artista.

Fortunato alcançou a maturidade por meio de uma evolução coerente, inventiva e sem rupturas ou desvios. A mão do artista foi sempre impecável, desde as pequenas aquarelas de reminiscência paisagística dos anos 80, de cores límpidas e luminosas a se destacarem sobre o espaço em branco, protagonista da obra como na arte oriental.  Às vezes, ao deixar a tinta escorrer sobre o papel para misturar-se ao pigmento num encontro espontâneo, permitiu a intervenção do acaso na obra. A impressão é de liberdade, leveza e prazer.

Ainda no final da década, o pintor associou às aquarelas sobre papel um componente contrastante, o de placas de ardósia. A contraposição entre a delicadeza de um dos meios e a rusticidade do suporte inesperado cria estranhamento, assim como a sensação de surpresa em outros momentos, quando Fortunato utilizou superfícies de madeira como elemento de obras realizadas com tintas a óleo ou acrílico.  Nas peças com ardósia, Fortunato contrapôs ao lirismo a aspereza.  Naquelas com madeira, comparou o artifício à matéria natural.  Essas obras foram um “rompimento da moldura”, uma vez que a disposição das placas de ardósia no espaço circundante é irregular, assim como é liberado o perímetro das obras com madeira. Na época, Paulo Herkenhoff escreveu sobre a série das placas ardósia: “A pedra como suporte da obra. Paisagem de pigmento. Pedra sobre pedra: fragmento que se refaz em todo na captação do panorama.”

Na década de 90, Chico Fortunato adotou uma linha de nítido corte geométrico em composições concretistas frontais e clássicas. Adiante, a curiosidade o levou a questionar a bi-dimensionalidade do plano. Quis sondar a ilusão volumétrica por meio de jogos destros em que empregou formas geométricas contrapostas em espelho.  Os volumes em trompe l’oeil  obtidos  desorientam o espectador e criam uma  sensação pulsante de avanço e recuo espacial. Não à toa Fortunato viveu durante anos na terra de Escher... Um tabu do abstracionismo foi desafiado: o da pureza ideal do plano.

O enigma volumétrico talvez o houvesse impulsionado a “partir do plano para o espaço”, ou seja, do bidimensional para o tridimensional.  Mas não, voltou ao plano, como o demonstram duas obras posteriores sobre suportes de madeira, “Figura 1” e “Quadrangular”, ambas de formato irregular. A produção do artista nessa fase continua a revelar consistência, seriedade e domínio.

Recentes, as jubilosas peças intituladas “Torções” lidam diretamente com o espaço dinamizado de modo sutil pela intervenção de ligeiras incidências de uma cor contrastante nas bordas de uma superfície monocromática. Essa distorção espacial já não cria ilusão de volume ou sensação de profundidade.  Dispostos na diagonal e de uma simplicidade encantadora, as “Torções” abordam um espaço em viés.  

No momento atual de uma trajetória consistente e bem lograda, a arte de Chico Fortunato atinge a resolução serena de um silêncio expressivo. A obra revela uma obstinada busca da máxima pureza na abordagem dos elevados temas de sua arte: a forma, a cor, o espaço, a pulsação e a luz.

Em ”Linhas que Flutuam” Fortunato emprega cores puras e resplandecentes. São telas de linho de dimensões generosas embora não extensas a ponto de impedirem a visão aproximada da superfície. O fundo é de uma ou não mais de duas cores, sobre o qual aparecem linhas segmentadas que correspondem às dimensões exatas da periferia do quadro.

A serena densidade dessas telas suscita semelhanças com a do pintor minimalista Robert Mangold. Mais que a diferença no formato dos quadros, a grande disparidade entre ambos é o tratamento dado à linha, elemento gráfico fundamental no universo do pintor americano e à qual Fortunato confere um valor dimensional. Ao aproximar-se de uma tela de Fortunato, descobre-se que as linhas anguladas de suas composições não são gráficas, pintadas a pincel, mas espaciais. Antes aparecem como ausência, gretas lineares na tela a revelarem a trama do linho no suporte ou as cores que marcaram etapas anteriores na engenharia da obra. Em certa medida, a linha em Fortunato faz lembrar as “costuras” de Paulo Roberto Leal. Surpreendentes interstícios flutuam onde à distância o espectador imaginara traços de tinta.

 O modo de fazer é laborioso e exige rigor e minúcia. A disposição “flutuante” das linhas anguladas é previamente esboçada no suporte da tela.  Resumo as palavras do artista: “A trama do suporte, seguindo o trajeto da linha esboçada, é coberta por uma fita isolante. O quadro recebe uma camada de tinta que recobre a fita. Retirada a fita, o suporte da tela surge como uma linha aberta à trama. Quando nos traços flutuantes aparecem três ou mais cores, é porque o processo foi repetido para cada cor. Cada linha é o testemunho da cor que dominou a superfície do quadro em algum momento do processo. A última cor a ser pintada é percebida no final como o fundo da pintura”.  A intensidade da atenção e a repetida incidência manual do pintor no decorrer do processo conferem às telas terminadas e meditativas sua cálida densidade e sua muito humana “immediatezza”.

 

Rio de Janeiro, 8 de março de 2019

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